MANIFESTAÇÃO DE 24 DE OUTUBRO DE 2020: UMA ANÁLISE PARALELÍTICA

Não era suposto filhos da mesma pátria lutarem entre si. Não era…

Apesar da conjuntura política de Angola e do mundo se encontrar empenhada na luta contra a COVID-19 e, em decorrência do aumento exponencial de casos positivos em Angola, se ter tornado cada vez mais recomendável a necessidade de se evitar aglomerados, a marcha pela cidadania, pelo fim do elevado custo de vida e por autarquias em 2021 foi realizada, terminando em confrontos violentos entre polícias e manifestantes, quando não era suposto filhos da mesma pátria, que até enfrentam os mesmos problemas, lutarem entre si. Não era…

LEGALIDADE vs. LEGITIMIDADE

O artigo 47.º da Constituição da República de Angola (CRA) garante a todos os cidadãos a liberdade de reunião e de manifestação pacífica e sem armas, sendo apenas necessária prévia comunicação à autoridade competente quando realizada em lugares públicos, mas sempre dispensando qualquer autorização. Essa comunicação, que, nos termos do artigo 6.º da Lei n.º 16/91, de 11 de Maio (Lei sobre o Direito de Reunião e Manifestação), é feita ao governador provincial, em príncipio, deve permitir a negociação entre o Governo e os manifestantes, antevendo já os possíveis contrangimentos que poderão ocorrer ou possibilitando a proibição da realização de reunião ou manifestação, pelo Governo, fundamentada por escrito, no prazo de 24 horas a contar da recepção da comunicação, o que não ocorreu na manifestação do dia 24, pelo menos, publicamente.

Ocorreu, entretanto, a comunicação pública das novas medidas de prevenção e controlo da propagação do vírus SARS-COV-2 e da COVID-19 (C-19), através do Decreto Presidencial n.º 276/20, estipulando no n.º 4 do seu articulado 25.º que “as actividades e reuniões realizadas em espaço aberto devem observar o distanciamento físico mínimo de 2 metros entre os participantes, devendo os organizadores assegurar a disponibilidade de mascára facial e o cumprimento das medidas de biossegurança”, mas proibindo e punindo criminal e administrativamente, através do artigo 29.º, ajuntamentos, de qualquer natureza, superiores a 5 pessoas na via pública. Duas normas claramente mutuamente exclusivas, considerando que a não especificação da actividade nem a exigência de um número limite de participantes inenunciados no artigo 25.º nos leva a inevitável interpretação de que, no contexto pandêmico, é possível realizar-se legalmente uma actividade de manifestação, desde que se cumpra com o distanciamento requerido e as medidas de biossegurança.

Além disso, o exercício dos direitos, liberdades e garantias fundamentais apenas pode ser limitado ou suspenso em caso de declaração de estados de necessidade constitucional, conforme estabelece o artigo 58.º da CRA, conjugado com o n.º 7 do artigo 4.º da Lei n.º 14/20, de 22 de Maio, que altera a Lei de Bases de Proteccção Civil e cria o conceito legal de Calamidade Pública. 

Como se percebe, a realização (i)legal da manifestação do dia 24 pode ser argumentada a favor ou contra os manifestantes ou as forças de segurança, restando-nos apenas olhar para a legitimidade dos actos.

Em princípio, presume-se que cidadãos que promovam uma manifestação política em tempo de contaminação progressiva da C-19 em Angola, têm igualmente consciência do risco da exposição das suas vidas e dos outros. Independemente disto ou de alguma pseudo-ilegalidade, considera-se legítima a iniciativa política dos cidadãos de, pacífica e ordenadamente, expressarem a tempo inteiro, num sistema democrático, as suas aflições e alertarem ao cumprimento das promessas políticas, sendo que já ficou provado que “ficar em casa” não tem reduzido a propagação do vírus, mas, pelo contrário, vem agudizando a débil situação económica das famílias. Ora, a sociologia weberiana da legitimidade política prescreve que o poder político deve decorrer da tríade de dominação legítima – carisma, tradição e legalidade - e não só da legalidade, podendo haver, naturalmente, legitimidade legal da polícia nacional e eleitoral do governo, mas não se refletir em legitimidade política para todos os cidadãos.

CUSTOS vs. BENEFÍCIOS

Como se pôde ler nos cartazes dos manifestantes, a manifestação, que aconteceu 9 dias após o discurso sobre o Estado da Nação proferido por S. Excia. Sr. Presidente da República, João Lourenço, e tinha como trajecto começar no Cemitério da Santana em direcção ao Largo 1.º de Maio, em Luanda,  objectivava reivindicar a acção do governo em relação ao desemprego e exigir que algumas promessas feitas no momento eleitoral sejam efectivamente cumpridas, sobretudo a realização das eleições autárquicas. No entanto, o que se verificou foi o confronto entre agentes de segurança e os manifestantes, que pelos relatos proferidos foi justificada pela insegurança pública proporcionada pela manifestação e pela violação do Decreto Presidencial n.º 276/20, o que resultou, segundo os dados relatados no momento da redacção deste artigo, na detenção de muitos cidadãos pela polícia, acusação pelos cidadãos de agressão e uso excessivo da força da polícia nacional, uma morte e muitos feridos, destruição do património público, etc. Além desses custos, podemos adicionar a existência lamentável de um confronto entre partes conflitantes sem nexo ou razão alguma de conflitualidade, ao estilo propalado por Sigmund Freud na sua teoria da irracionalidade das massas.

Os benefícios prováveis da manifestação devem ser a concretização da chamada de atenção ao Governo sobre a existência de forças opostas ao sistema de governo implementado e o alerta ao governo e à sociedade, de um modo geral, do estado de incumprimento de algumas promessas eleitorais. De qualquer forma, benefícios não são necessariamente resultados positivos, sendo que os custos da manifestação acabam por ser cada vez mais superiores e visíveis em relação aos benefícios para todos os cidadãos angolanos. 

FORÇAS DE SEGURANÇA E MOVIMENTOS REVOLUCCIONÁRIOS vs. CIDADÃOS ANGOLANOS

Tanto pelos preponentes da organização da manifestação, assim como pela força da polícia nacional, ou ainda pelo surgimento das novas medidas de prevenção e controlo da pandemia um dia antes da data da realização da manifestação,  poderíamos conjecturar objectivos políticos inconfessos decorrentes deste facto político e reflectir em torno de quem teve a culpa, no entanto, considerando a recorrência desses confrontos, que vêm se agudizando cada vez mais, torna-se mais importante para nós clarificarmos que tanto a polícia, que tem como missão proteger e garantir a lei, a ordem e a segurança pública, assim como os movimentos “revoluccionários” angolanos, que promovem reivindicações contra a forma de governo actualmente implantada e a direcção/eficácia das políticas públicas, são, os dois grupos, formados por cidadãos angolanos, que vivem as mesmas dificuldades e passam pelas mesmas aflições. Convinha, nesse sentido, percebermos que tanto a ordem pública, como as manifestações, quando correctamente geridas e exercidas, beneficiam todos os angolanos, garantindo a manutenção e o melhoramento do sistema político de governo.

Dito isto, é lamentável vivenciarmos, em momentos de paz, filhos da mesma pátria lutarem entre si. Seja qual for a missão ou o objectivo de cada um dos grupos, urge a necessidade do Governo reconhecer cada vez mais a necessidade e a importância do execício democrático das manifestações e substituir  esses enfrentamentos entre cidadãos angolanos, pela criação e uniformização de um ambiente coeso em que o exercício poliárquico da expressão legítima dos descontentamentos políticos seja realizado pacificamente, garantindo a ordem e a segurança públicas e reduzindo ao máximo o custo incalculável das manifestações, em que a culpa da violência entre os cidadãos angolanos e a destruição do património público acaba morrendo parcialmente solteira. Quo vadis, Angola?


POR: Walter António, Politólogo e Economista



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